quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Tire as dúvidas sobre a existência do verbo medalhar

O velocista jamaicano Usain Bolt medalhou
três vezes na Olimpíada do Rio.
Foto de Fernando Frazão/Agência Brasil - 15/8/2016
Lídia Maria de Melo

Durante a Olimpíada do Rio, comentaristas de emissoras de televisão utilizaram com frequência o verbo "medalhar", para noticiar que algum atleta conquistou um lugar no pódio durante a competição que reuniu 11.303 desportistas de 206 países.
Não demorou para que, nas redes sociais, internautas criticassem o uso desse verbo, sob a alegação de que se trata de um neologismo desnecessário.
Quando se tem dúvida a respeito de uma palavra, a primeira atitude que se deve ter é pesquisar em um dicionário.
Se a palavra estiver registrada como verbete, isso significa que já houve tantas ocorrências a ponto de os lexicógrafos não terem dúvida em oficializar sua existência.
O registro em dicionário, porém, não é o ato que garante a validade de um vocábulo.
A criação de um termo na língua portuguesa é da competência dos usuários do idioma. Ou seja, quem cria palavras são os falantes da língua. Todas as pessoas podem fazer isso, sem que precisem conhecer teoria linguística ou gramatical. Basta que respeitem, mesmo intuitivamente, a estrutura do idioma.
No processo de criação de um verbo, por exemplo, junta-se a raiz de uma palavra às terminações verbais -ar, -er, -or, -ir. Esse procedimento é que permitiu que o compositor e cantor Djavan, na música "Sina", emplacasse o verbo "caetanear", em homenagem ao também compositor e cantor Caetano Veloso. Apenas não será possível a invenção de uma conjugação, como -ur, por exemplo.
A língua é dinâmica, e os verbos são uma lista aberta. Podem surgir a partir das necessidades dos falantes do idioma.
Foi por uma necessidade histórica que a humanidade inventou palavras para designar o pouso do homem na Lua, em julho de 1969. Em Português, por analogia com o verbo "aterrissar", criou-se  "alunissar".
O surgimento de novos termos foi o tema de minha pesquisa para a dissertação de Mestrado, defendida na Universidade de São Paulo (USP), de 1998 a 2001. Minha pesquisa foi desenvolvida em torno da influência dos jornais no processo de formação e disseminação de novas palavras na língua portuguesa.  Pesquisei seis jornais em dois momentos diferentes. 
Quanto ao verbo "medalhar", além de existir nos comentários dos jornalistas esportivos, está registrado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras e em dicionários, como Houaiss e Aurélio.
Mesmo que não fosse digno de um verbete nos dicionários, sua existência estaria consagrada pelos usuários do idioma.
Então, agora você já sabe, "medalhar", no sentido que os comentaristas usaram na Olimpíada do Rio, quer dizer "ganhar medalha".

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Você sabe o que é "cutruvia" e " catraia"?

Lídia Maria de Melo

Quando alguém me pede o sinônimo de uma palavra, invariavelmente pergunto: "Qual é a frase?".
A pergunta tem fundamento. Uma palavra fora do contexto pode concentrar diversos sentidos (polissemia), ou não ter sentido algum.
O contexto é um conjunto de circunstâncias que ajudam na compreensão de uma mensagem. A partir dele, um fato ou um vocábulo adquire significado.
Na novela Velho Chico, escrita por Benedito Ruy Barbosa, Edmara Barbosa e Bruno Luperi,  e apresentada na Rede Globo às 21 horas, a personagem Luzia costuma usar as palavras "catraia" e cutruvia".
Pelo contexto em que são empregados, não há dúvidas de que a mulher de Santo dos Anjos atribui aos dois termos uma carga semântica bastante ofensiva.

Catraia no Porto de Santos
Catraias atracadas na Bacia do Mercado, em Santos. 
À esquerda, o canal sob o  Porto. Abaixo, catraia.
Desde criança conheço a palavra "catraia". Trata-se de um barco, com um motor, tripulado por uma pessoa, o catraieiro.
Na travessia entre Santos e o distrito de Vicente de Carvalho, em Guarujá, a catraia transporta 25 passageiros sentados, além do catraieiro. Em Santos, o embarque (e desembarque) é feito na Bacia do Mercado.
A catraia segue por um canal, sob o cais do Porto, até alcançar o Canal do Estuário para, após atravessá-lo, atracar em outra estação de embarque e desembarque em Vicente de Carvalho.
Quando a maré está baixa, as catraias chegam a atolar no fundo do canal sob o Porto. Quando está alta, os passageiros precisam se curvar, mesmo sentados, para não baterem a cabeça no teto de concreto. Se a passagem fica inviável, a atracação é feita no cais do Porto mesmo e as catraias não chegam à Bacia do Mercado.
Se duas catraias se encontram em direção contrária dentro do canal sob o Porto, a água muitas vezes respinga nas roupas dos passageiros.
 Devido à concentração de óleo, as manchas se revelam quando os respingos secam. A única forma de retirar esse óleo da roupa é esfregar óleo de cozinha no local, até sumir a mancha. Depois, é só lavar.
Não ando de catraia há muitos anos. Acho que há mais de quatro décadas, mas de vez em quando passo perto da Bacia do Mercado e tudo está como sempre.
Voltando ao sentido da palavra "catraia", o que eu conheço nada tem a ver com o empregado por Luzia, em Velho Chico.
A mulher de Santo dos Anjos utiliza o termo para ofender Maria Tereza de Sá Ribeiro, a antiga e eterna paixão de seu marido. E não se trata de uma invenção semântica da personagem.
O dicionário Aurélio Século XXI (edição de 1999) registra "catraia" com quatro acepções, que são:
  1.  barco de pequeno porte; 
  2.  pequena construção, casinhola; 
  3.  meretriz; 
  4.  meretriz de baixa classe.
O dicionário Míni Houaiss (2008) e o Dicionário da Língua Portuguesa Comentado pelo Professor Pasquale (2009) só admitem "catraia" no sentido de barco pequeno.

Cutruvia
Se "catraia" é reconhecida pelos dicionários, inclusive pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), ao menos no sentido de "barco", o mesmo não ocorre com "cutruvia", outro xingamento do repertório de Luzia.
Essa ofensa repetida à exaustão contra Maria Tereza não tem registro no VOLP, nem nos dicionários citados acima.
Segundo o site O Nordeste.com , o Dicionário do Palavrão e Termos Afins, de Mário Souto Maior (2010), registra "cotruvia" (com "o") como prostituta de ínfima classe.
O site Dicionário Informal  apresenta dois conceitos para a palavra:
  1.  Mulher da vida, que se relaciona com homens comprometidos. Meretriz. Amante.
  2.  Pessoa por quem se nutre antipatia. 
Assim, "cutruvia", na linguagem falada, designa prostitutas.
Mesmo que não houvesse registro em nenhum local, seria fácil perceber seu significado. Bastaria prestar atenção à maneira como Luzia se expressa.
O contexto seria suficiente para esclarecer as dúvidas semânticas.