segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Metalinguagem e intertextualidade em ação policial contra atores

Lídia Maria de Melo

Uma trupe teatral, formada por jovens artistas, apresentava-se na tarde de domingo na Praça dos Andradas, em Santos, bem diante da Oficina Cultural Pagu, antiga Cadeia Velha.
A peça ironizava policiais. Não sei muito sobre o enredo. O que vi foi por meio de um vídeo, que mostrava a atuação dos atores e a plateia, formada por poucos jovens, sentada no chão.
Pouco tempo depois, vários policiais militares se aproximaram e partiram para cima de todos. Um deles arrancou o celular da mão de uma garota que estava filmando. Levei um susto, porque a cena me remeteu aos anos de ditadura.
Após alguma resistência, aqueles vários PMs levaram um dos artistas algemado no camburão.
Indispensável dizer que o fato virou notícia e angariou muitos protestos pelas redes sociais.
Antes de seguirmos com essa história, devemos fazer uma reflexão linguística.
Sem intenção, os policiais acabaram dando um exemplo de metalinguagem¹. Ou seja, puseram em prática exatamente o que a peça criticava. A ficção tornou-se real diante dos olhos da assistência.
(Veja mais explicações sobre  o assunto no final do texto).
Repercussão
Nas redes sociais, nem todos os comentários sobre a ação dos policiais foram favoráveis aos artistas.
Entre os desfavoráveis, estavam os que questionaram a qualidade da peça.
Nesse momento, não pude ficar calada. O que menos me importa é a qualidade da montagem.
Diante do que está gravado em vídeo, o que não se deve é desviar o foco da questão.
O que entra em jogo é a violação das garantias constitucionais.
Nós não podemos voltar para um tempo em que a censura prevalecia sobre toda e qualquer manifestação crítica, sobre as artes de maneira geral, e os teatros eram invadidos, com a consequente prisão dos atores.
Não queremos ver repetidos esses fatos de triste memória.
Por isso, é bom que reflitamos sobre o respeito e a consolidação da democracia em nosso País.
Uma boa forma de começar é recorrendo à literatura.
Então, selecionei três manifestações literárias contra esse tipo de ação repressora, porque os textos logo me vieram à mente, assim que soube do ocorrido.
As três obras são marcadas pela intertextualidade ² (conceito cunhado por Júlia Kristeva, nos anos 1969) ou pelo dialogismo³ (conceito usado por Mikhail Bakhtin  no início do século XX). 
Após os poemas, apresento as definições dessas teorias. Agora, vamos à leitura.

De Martin Niemöller (pastor luterano, símbolo da resistência aos nazistas): 
"Sermão"  (1933)

"Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar".
.....................................................................................................
De Bertold Brecht: "Intertexto" (início do século XX)

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
..................................................................................................
De Eduardo Alves da Costa: "No caminho com Maiakóvski" (década de 1960)

[...] Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
[...]".

>>>>>>>>>>>
Notas de rodapé:

¹ Metalinguagem. Ocorre quando o emissor da mensagem explica um código, usando o próprio código. Por exemplo, a peça interrompida na Praça dos Andradas falava sobre a ação policial, quando os policias reais apareceram e agiram com truculência. A ação deles explicou a própria ação criticada na peça. Se uma poesia discorrer sobre poesia, se uma música falar sobre música, quando o dicionário usa palavras para explicar o sentido das palavras, nisso tudo se usa a função metalinguística da linguagem, ou seja, é metalinguagem. Segundo Roman Jakobson, a linguagem pode assumir seis funções. Além da metalinguagem, as demais funções da linguagem são: emotiva, conativa, referencial, fática e poética. 

² Intertextualidade. Define a criação de um texto a partir de um outro texto já existente. A obras intertextuais incluem, por exemplo, paródia, citação, alusão, referência, paráfrase e pastiche. Pode ocorrer em várias áreas do conhecimento. Seu entendimento dependerá da bagagem cultural do receptor. 
 

³ 
Dialogismo. Define o processo que Mikhail Bakhtin chamou de interação entre textos, um diálogo textual, uma polifonia.